
Pediu-me para escrever esta historinha —para lhe poupar lágrimas, disse ele— de quem foi a sua paixão e a sua tristeza, e eu escrevo com as palavras e a alma dele, com os dedos meus tingidos nas águas do mar de Luanda, que são também as nossas águas... Contou com a voz ténue de quem venera os silêncios que aparecera nem sabia como, pequeninha ela, na sua vida, caída dum lugar que fica além das lembranças, onde os tentáculos da memória se tornam fios no lusco-fusco. Bem que há donos que escolhem cão e cães que escolhem dono, a Babalú elegeu-o e, de troco, ele adoptou-a, perfilhou-a, para seguir fazendo uma vida a dois; companheiros que se entendem olhos nos olhos e no contacto dum corpo encostado a outro, em harmonia de fábula, como os contos de animais que falam com mais juízo do que as pessoas. Tanto era assim que por vezes ele ficava atento à boca dela, aguardando que exprimisse as coisas lindas que o olhar dela transmitia. Saíam juntos por toda a parte possível. Quando ele ia para o trabalho, ela ficava sossegada a cochilar no banco de trás do carro, a acumular forças para se jogar num pulo ao rosto dele e cobri-lo de beijos, como a criança que se atira aos braços da mãe após uma ausência de minutos que pareceram horas, como a namorada recebe o namorado que chegou de comboio num dia frio de inverno. Nas tertúlias com os amigos, Babalú era uma mais, e quando depois de andar na gandaia, chegava o momento de espairecer a ressaca, deitava-se ao lado dele na praia do Mussulo, sem deixar ninguém aproximar-se, como um anjo sem asas, marcando o limite das confianças. Mas uma noite —sempre há uma noite nos contos que chega funesta, tal como na vida há dias, algum dia, que se perde no calendário— em que não a levou com ele, no regresso a casa, ali pertinho do Mercado do Quinaxixe, a Dona Sofia, a mãe dele, à espera, mensageiro triste de novas que ninguém quer dar, mas que no fim foi dizendo: —A Babalú foi atropelada e está gemendo no teu quarto. Não me contou o quanto lhe pesava o coração, convertido em punho que bate no peito na pungência do remorso que ecoa: “Porquê eu não te levei comigo?”. Não, contou apenas do olhar diferente com que o recebeu, como pegou nela ao colo, como a abraçou com o amor todo —grande como é sempre o amor— que lhe tinha. E ela, que aguentara até esse momento para se despedir, balançou leve a cauda e no esforço deixou desfalecer a cabecinha e escapar um delicado "mungueno" "xaxualho" de xau-fui no derradeiro alento. "
Texto de sun miou...www.istononeuncabare.blogspot.com
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