29/06/2011

EU E ELA


EU

Sonhei-a assim toda tatuagem a tatuagem, detalhe a detalhe, poro a poro, vestida com os coloridos panos, nua todinha,  deitada e em pé, caminhando, dormindo, falando, calando, amando, chorando, sorrindo, dançando... 
Sonhei-a assim toda tinha eu quase quinze anitos, homem já quase todo feito e pronto, segundo todos os procedimentos estabelecidos nas tradições da minha gente.
Sonhei-a assim mesmo todinha minha e exclusiva , completamente intocada por ninguém e perfeita tal qual como eu naqueles meus todos catorze quase quinze:  virgem total.
E de tanto que a sonhei se me concretizou esse sonho como vida sonhada mesmo.
Casamos em meio de festivas comemorações e alegria de toda a nossa gente, povo puro dos matos do sul.
Agora, repassados que são os cinco primeiros anos de vida junto - e pensando melhor -, se calhar eu não a
queria assim tão perfeitamente acabada, tão tão mãe dos seus filhos e, pior, se escusando a si própria de me dar razão nenhuma para eu, nos mínimos, ter queixas contra.
Nem um uma nenhuminha vez, sequer!
Por isso eu agora já nem sonho mais por falta de validade dos meus sonhos.
Quem quer sonhar sempre não pode realizar nunca!
Todos os sonhos são só sonhos de nunca realizar de nunca acabar. E quando se realizam acabam e se acaba tudo também com eles!
Nós incluído.
Porque afinal tudo foi só coisas de criança.
Coisas de criança quando se é homem quase todo feito e pronto.
Desfeito e tonto, mas é!

ELA


 O meu nome é menina, logo pouco conhecedora  do mundo. Talvez por isso recorde amiúde  os ditos entrecortados dos meus mais velhos, sempre atentos a que as crianças não escutassem certas conversas.
Restaram-me então frases codificadas que, no decorrer dos meus poucos anos, fui traduzindo mais ou menos assim:
Os sonhos dos homens têm o tempo daquela  própria concretização, que por costume sempre é breve. Se demorar muito partem para outro sonho. E de sonho em sonho esgotam a vida toda, muitas vezes sem a ter vivido.
Em mim, pelo contrário os sonhos são coisas mais duradouras, não se esgotam, apagam-se como estrelas ou fogueiras.
E então quando encontrei a pessoa encantada dilatei o meu sonho e a vida tornou-se muito curta.
Mas mentindo-me eternidades.
Porém, meu marido desencantou por causa de quase nada por causa de ciumes de filhos que ele sonhou comigo ter.
E agora já quer partir - insonhante - em viagem de profundos arrependimentos  para muito longe afastando- me mais ainda.
Na verdade eu já sabia que muitas vezes morremos sem terminar os nossos   sonhos.
Mas não consigo esquecer o inebrio do dia-após-dia na vida desfrutando da possibilidade  de envelhecer ao lado de um sonho sem que ele tenha partido já para outro.
Por isso eu quero continuar assim menina para sempre .
Principalmente agora que meu marido quer ser homem longe de mim...




Publicado in "Contículos" Título na versão original: O Um e a Outra
Um Livro de JonLima





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